O simbolismo em torno do título A Vida Invisível é bem interessante, ao explorar a história de duas irmãs que sofrem ao seguirem suas respectivas vidas, sem saber o que está acontecendo com a outra, enquanto sofrem os males do patriarcado e da sociedade conservadora, cada uma da sua maneira. O filme de Karim Aïnouz é um drama eficaz, que se beneficia de atuações marcantes e uma direção precisa que não deixa a narrativa cair no melodrama, apresentando ao espectador uma emoção genuína em torno da narrativa.
A trama se passa no Rio de Janeiro dos anos 1940 e conta a história das irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guida Gusmão (Julia Stockler), filhas de um pai português e conservador. Guida, a mais velha, quer aproveitar a vida e a juventude, enquanto Eurídice só pensa em realizar seu sonho de entrar num conservatório musical para estudar piano, sua grande paixão. Inicialmente não percebemos uma grande conexão emocional entre as duas, mas fica claro o quanto uma se preocupa com a outra. É justamente após a separação que percebemos o quanto esse elo familiar é forte e a falta que uma faz na vida da outra.
A história é baseada no livro “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha. Contudo, o título A Vida Invisível é mais condizente com a narrativa, já que apesar de Eurídice ser a personagem principal da narrativa, o filme pertence a personagem Guida. Ela é a grande força que move a trama, e se destaca principalmente graças ao incrível talento da atriz Julia Stockler. A jovem é a que mais sofre pelos erros cometidos na juventude e por tentar confiar nos homens, já que ela foge de casa em nome de um grande amor e retorna para casa grávida, sendo também rejeitada pelo próprio pai.
É a partir desse ponto que temos a separação das irmãs, motivada pelo conservadorismo absurdo do pai. Ele conta para Guida que a irmã mais nova está fora do país estudando, enquanto Eurídice se casa com Antenor e não tem notícias da irmã mais velha, já que o pai omite informações sobre ela.
O roteiro encontra então uma forma de passar ao espectador a passagem do tempo, através de cartas escritas por Guida para sua irmã contando o que está acontecendo com ela. É um recurso interessante, onde através de narração em off da personagem vemos o quanto a mais velha sente falta da caçula, e ao datar cada uma delas temos base para saber quanto tempo se passou entre cada uma das cartas. A jovem mantém a esperança de que Eurídice algum dia leia as cartas, mas elas funcionam mais como um diário da própria Guida.
Escrito pelo diretor junto com Murilo Hauser e Inés Bortagaray, o roteiro de A Vida Invisível constrói muito bem a jornada de cada uma das irmãs e faz um paralelo da vida delas. Enquanto Guida tem que se virar como mãe solteira, Eurídice segue como dona de casa. A mais velha tenta manter por um tempo a juventude, indo para festas, mas sofre pelas dificuldades impostas a mulher que tem que trabalhar e cuidar do filho. Enquanto a caçula vive um casamento sem amor, enquanto tenta manter a chama acesa do amor à música através do piano.
É uma trajetória triste e melancólica, com pequenas doses de alegria, que o cineasta Karim Aïnouz desenvolve da maneira fascinante, criando aos poucos a empatia do espectador com a história das irmãs. É uma trama que poderia facilmente cair na pieguice, mas Aïnouz é hábil em manter a narrativa nos trilhos, com a dose certa de emoção. Isso se reflete na parte técnica, onde através de detalhes do cenário e do figurino das personagens percebemos as mudanças de humor e o desenvolvimento delas como pessoas.
Um bom exemplo é o azul do banheiro da casa de Eurídice, que ilustra bem a tristeza de seu casamento arranjado. A cena da noite de núpcias é brilhante em mostrar a situação, já que o sexo do casal é desajeitado, mas, ao mesmo tempo, abrupto pela falta de sentimento. Aqui é bom citar o excelente trabalho de Gregorio Duvivier como Antenor, que poderia construir facilmente construir um personagem caricato e “malvado”, mas que o apresenta de forma verossímil, deixando sua representação da falta de amor ainda mais crua e “assustadora”.
Para concluir, em seu 3º ato A Vida Invisível ainda entrega a “magia” de Fernanda Montenegro, que fecha o filme de maneira magnífica, provando que a empatia e o elo emocional com a jornada das irmãs Eurídice e Guida foi construída com sucesso. Mesmo com pouco tempo em cena a atriz veterana deixa a sua marca no filme.
Em síntese, A Vida Invisível é um trabalho belíssimo do diretor Karim Aïnouz que presenteia o espectador com uma linda história, que ganha vida graças a parte técnica impecável e um trabalho incrível do elenco. Uma trama agridoce e que na mão do cineasta se torna uma experiência emocional muito forte, com o dose certa de melodrama.
Classificação:
Título Original: A Vida Invisível (Brasil, 2019)
Com: Carol Duarte, Julia Stockler, Gregorio Duvivier, Bárbara Santos, Flávia Gusmão, Maria Manoella, Antônio Fonseca, Cristina Pereira, Gillray Coutinho e Fernanda Montenegro
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Murilo Hauser, Inés Bortagaray e Karim Aïnouz
Duração: 139 minutos
Amei esse filme. Denso e delicado ao mesmo tempo... Lembro de ter saído do cinema refletindo sobre a história e as cenas..
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